quarta-feira, 14 de maio de 2008

Pinóquio: do tosco à padronização

O presente artigo é resultado de nossos debates na Confraria Reinações. Para quem quiser saber o que é a Confraria, basta clicar aqui.

O vídeo abaixo, foi selecionado por Peter O'Sagae para ilustrar meu artigo publicado originalmente aqui, no site dobras da leitura.




Na apresentação de As aventuras de Pinóquio (Paulinas, 1989), Liliana Iacocca afirma “Pinóquio não é príncipe, não é rei, não é super-herói. É um pedaço de pau que está dentro da gente, dentro de quem quer virar gente.”

Pinóquio está em terceiro lugar no ranking dos livros mais vendidos, como a Bíblia e o Alcorão. A sedução ao texto de Carlo Collodi, cujo nome verdadeiro era Carlo Lorenzini, ficou gravada na memória de muitos leitores através da característica do personagem central, um boneco de madeira que, ao mentir, seu nariz crescia, delatando-o. Mas há mais a investigar nesse texto que se perpetua no imaginário de leitores de todas as idades do que apenas o espaço do certo e do errado no desenvolvimento infantil.

Como bem diz Liliana, Pinóquio é um pedaço de pau que está dentro da gente. Nascemos toscos, sem limites, sem enquadramento no que venha a ser coerente e aceitável como comportamento social. Mais do que um menino egoísta, Pinóquio é uma criança ingênua, começando sua caminhada num mundo repleto de armadilhas a tentá-lo em sua essência primordial, em seu aspecto mais humano: a pureza.

Para se transformar em menino, como é de seu desejo, Pinóquio precisa se aventurar no mundo e descobrir seus limites, como marionete à disposição do joguete social que os adultos lhe impõem — quase como que se lhe dissessem: o mundo é um lugar cruel, injusto até; sobrevivem os fortes, aqueles que se enquadram ou submetem-se ao polimento de sua madeira bruta.

Pinóquio é o indefeso que, para ser “gente”, precisa se adequar ao sistema imposto. Isso fica muito claro na ilustração final, de Nino e Silvio Gregori, da edição a que me refiro: lá está Gepeto moldando uma rica moldura de folhagens. Pinóquio vê-se no espelho, numa sobreposição de imagens difusas, em sua transformação de boneco para menino. Este, em primeiro plano e em cores, a imagem bem definida: roupas de menino bom, com laçarote na gola, cabelos bem alinhados e olhos azuis. O texto final ressalta esse aspecto, sugerindo que a madeira foi polida e, embaixo dela, descoberta sua natureza bela tal qual a perfeição de um ramalhete de flores: — “viu a imagem viva e inteligente de um bonito menino de cabelos castanhos, olhos azuis e com ar alegre e festivo como um buquê de rosas”. Mais adiante, num dos últimos parágrafos, quando Gepeto refere-se às mudanças ocorridas na casa, diz ao menino Pinóquio: — “Porque quando os meninos mal comportados se tornam bons, conseguem dar alegria e felicidade também para a sua família.”

O egocentrismo peculiar à idade, sendo vítima de sua própria essência pueril, é destacado em Pinóquio. Essência essa que o joga no mundo, permitindo-lhe encantar-se por ele, sem temores ou prudência, descobrindo que ser “gente” reside em olhar o outro, em zelar pelo outro — e, para isso, faz-se necessário controlar seus impulsos naturais a fim de enquadrar-se no mundo dos Homens, com seus códigos obscuros e cerceantes da natureza criativa e aventureira.

Pinóquio, antes de ser uma obra moralista a ensinar a ser um menino bom, é uma metáfora do desenvolvimento infantil a fim de contemplar os padrões de comportamento da época (Collodi escreveu sua história, em capítulos, em jornal para crianças, a partir de 1881). Quem de nós, crianças ainda, não abandonaria o caminho da escola para assistir ao Grande Teatro de Bonecos? Quem de nós, crianças ainda, resistiríamos à possibilidade de plantar cinco moedas de ouro e vê-las frutificar em duas mil para ajudar seu humilde pai? Nenhum pedaço de pau que quer virar gente resistiria a essas situações, se não possuísse já dentro de si a humanidade que desejava e, sobrevivente no seu íntimo, mantém intacta a capacidade de se maravilhar com o mundo — lapidando-se no risco da aventura, no erro, nos acertos, nas dúvidas sobre o que não está nas cartilhas escolares, a fim de salvaguardar o bem padronizado da sociedade.

Não se trata de fazer aqui uma apologia à subversão, mas resistir às embalagens impecáveis e sem conteúdo do que se nega o valor da experiência vivida. Talvez, o próprio Carlo Lorenzini quisesse dizer à humanidade que, por mais erros que alguém venha a cometer — e mesmo o autor tendo abandonado o seminário tal qual seu personagem abandona a escola —, todos precisamos de inúmeras chances: basta que estas nos sejam oferecidas com a delicadeza de quem não esqueceu seus tempos de madeira bruta. E, pela urgência dessa postura, Pinóquio continua atual.

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