segunda-feira, 24 de junho de 2013

Um relato

No Rio, a trabalho, converso com uma senhora da antiga aristocracia carioca. Vive numa casa bacana, mas hoje precisa trabalhar e colocar um dos quartos para locação por temporada no bed and breakfest, para ajudar nas despesas. No passado, ela viajava pelo mundo todo. Hoje 'não consigo ir à Europa três vezes por ano como de costume. O dinheiro não dá.' Conta-me que precisou dispensar empregados informais, entre eles, sua empregada. 'Tive de combinar com outras amigas para que minha empregada fizesse apenas duas horas diárias em minha casa e na duas horas diárias na casa delas. Revezamos os seus serviços. Hoje, quem mantém a limpeza sou eu, depois que ela faz o grosso da faxina. Este ano ela foi à Europa, veja você! Limitar a duas horas de trabalho em cada uma das casas foi a forma que encontramos de não caracterizar vínculo empregatício, para não ter de assinar a sua carteira de trabalho. Ficaria muito caro pagar seus benefícios (leia-se direitos). Essas mudanças estão alavancando os pobres para uma outra categoria econômica, mas estão nos achatando. Você me entende, não?' 

Respondi, 'não sei se entendo. Na minha casa eu mesmo faço a faxina. É um apto pequeno. Nós só tivemos empregados quando eu nasci. Mas foi por pouco tempo. Meus pais sempre nos estimularam a trabalhar. Mas a senhora não acha que essas medidas são uma forma de regularizar e colocar em ordem algumas coisas meio bagunçadas do trabalhador informal?' Ela ficou em silêncio. Levantou-se e de maneira muito elegante pediu-me licença, precisava subir ao andar superior, descansar, no dia seguinte teria hora no salão, fazer unhas e cabelo. 

Não consegui deixar de pensar sobre a solução que ela encontrara para fazer economia. 'Duas horas em cada casa não caracteriza vínculo empregatício'. 

A conversa se deu no pátio de sua casa estilo colonial, dois pisos, pé direito de 5m cada, pátio com belas árvores, vários cães de raça, luminárias de jardim estilo barroco, mobília do tempo do império, invejável biblioteca, molduras de prata com fotos de família. Uma casa em bairro nobre e agradável que ela disse 'Não é a melhor parte do bairro. A vizinhança, aqui, é de italianos que enriqueceram fazendo pães (leia-se trabalhadores). Não tiveram preocupação em construir casas bonitas como esta. Descaracterizaram o bairro. Tranquiliza-me saber que os altos muros nos protegem de ver o que fizeram no entorno. Eu tenho procurado manter tudo como sempre foi, pelo menos aqui dentro, no que é meu. Antigamente, quem comprou casa aqui foi por conta de que lá embaixo, perto do Sambódromo, era um nascedouro de pernilongos e houve a epidemia. Quem pôde, comprou casa aqui em cima para se proteger. Os pernilongos não sobrevivem aqui por causa da temperatura. Hoje o bairro está muito mudado. Pessoas que a gente nem sabe quem são e de onde vieram. Meu marido quer mudar. Mas eu tenho um apego enorme com a casa. Mamãe morreu aqui, ali - aponta para um banco de praça lindamente instalado no jardim iluminado por postes do Rio antigo - Você pode ficar à vontade, viu! Vou me recolher. Está ficando tarde. E aqui nós costumamos dormir antes das 22hs. Ah, não dê muita conversa para o caseiro. Ele está conosco há anos, mas à noite ele bebe e diz bobagens. 
- Devo apagar as luzes do jardim antes de me retirar?
- Não se preocupe com isto. Alcides faz isto. Boa noite.
Assenti com meio sorriso.
- Boa noite.
Antes que ela se retire ainda tenho tempo de lhe dizer:
- Sou de família italiana. Meu bisavô passou muito trabalho para montar sua vida aqui, no pós guerra. Chegou cheio de filhos. Tinha medo. Meu avô, o caçula, aprendeu o serviço de pedreiro e depois virou engenheiro na região onde meu pai nasceu. Muita casa que ele construiu ainda está em pé, como esta. Com a força do seu trabalho, deu escola para todos os onze filhos. 
Ela baixa o olhar. E se retira. Um dos cães late. 'Seo' Alcides, o caseiro, sai do fundo do quintal, do interior das duas peças onde vive na parte mais escura, ao fundo do jardim. 
- Boa noite! Desculpe, o cachorro se soltou do canil. Ele está lhe incomodando?
- Boa noite. Não incomoda nada, não. Eu gosto de cachorros. Não me dou bem com os gatos. Bonito esse jardim. O senhor quem cuida, né?
- Faço o que posso. Tenho amor por essas plantas. 
- Muito bonito o seu trabalho.
- Obrigado.
- O senhor trabalha há muito tempo, aqui?
- Desde sempre. Desde garoto.
- Foi o senhor quem colocou as plaquinhas com o nome de cada planta?
- Coloquei, mas não escrevi.
- Não?
- Não sei escrever, meu filho.
Silêncio.
- O senhor, escreve, não é? Dona ..... me disse. 
- Escrevo. 
- Acho bonito quem sabe escrever.
- Espere um instante, por favor, 'Seo' Alcides.
- Espero, sim. Nunca saí daqui. - Ele ri.
Vou ao quarto e trago um exemplar de meu livro Conchas.
- Para o senhor.
- Para mim, meu filho? Mas eu não sei ler.
- Veja as imagens. Elas também contam uma história. 
Ele pega o livro:
- Bonita capa.
- Obrigado. 
- Não tem porquê.
- O senhor não sabe ler por que não estudou, 'Seo' Alcides? Ou não quis estudar?
- Não tive tempo. Muita coisa pra fazer nessa casa. e agora eu faço tudo sozinho. 
- O senhor sabe que pode estudar, não sabe? Há cursos noturnos para adultos que desejam aprender a ler e escrever. Deve ter algum aqui perto. 
- Eu tô velho. Nunca consegui tempo pra estudar. Esse jardim sempre foi a minha vida. Dá trabalho cuidar de um jardim como esse.
- Esse seu trabalho é muito bonito, mas aprender a ler e escrever também é bonito. Bonito pro senhor, sabia? Já pensou no dia em que o senhor conseguir ler o que está escrito nas páginas dos livros? Desse livro? Ou nas plaquinhas das plantas desse seu jardim?
Ele ri. Passa a mão sobre a capa do livro.
- Esse jardim não é meu, meu filho. Bonito esse seu trabalho. 
- Não mais bonito do que o seu. 
- Obrigado, meu filho. 
- Manter as plantas bonitas e verdinhas é uma coisa que nem todo mundo sabe fazer. Tem gente que deixa morrer a planta dentro de casa.
O cachorro se aproxima, abana o rabo para mim. Passo a mão no cangote dele. Pula ao meu lado, no sofá. 
- Sai daí, Valente!
- Pode deixar. Ele não me incomoda.
O céu está limpo de nuvens. A temperatura agradável. 'Seo' Alcides acende um cigarro. Faz-se uma pausa em nossa conversa. Ele vai até uma das árvores e retira uma ou duas folhas já amareladas. Me olha:
- O senhor acha mesmo que posso aprender a ler e escrever, na minha idade?
Da janela do piso superior ouço a voz da minha anfitriã:
- Seu Alcides, tranque o portão e apague as luzes! Jã está tarde.
Ele sorri, resignado e se retira em direção ao portão. 
- Vem, Valente!
Eu levanto para me retirar.
- Muito obrigado, meu filho, pelo livro. Boa noite pra você!
- Pro senhor também. 
Antes que ele desapareça na escuridão, a caminho do portão de entrada, eu ainda tenho tempo de dizer:
- Pode.
- O que foi, meu filho?
- Sim, o senhor ainda pode aprender a ler e escrever.
Ele sorri. Eu me retiro.

No dia seguinte, a mesa posta para o café na grande sala de jantar. Guardanapos de pano. Leiteira fumegante. Mamão cortado. Pão integral feito em casa. A enorme janela, aberta para o pátio. O sol está em todo o lugar. No banco do jardim o 'Seo' Alcides folheia o livro. Passa a mão rude sobre a página, como se tocasse a flor. Tenho a leve impressão de ler um sorriso em seus olhos.